Thursday, April 16, 2009

Quando nos mudámos para a casa nova eu nunca tinha tido uma escrivaninha.

Fazia os trabalhos de casa à braseira e não fossem os livros que punha por baixo da folha de papel, as composições sairiam com o padrão do naperon que cobria a camila.

Punha-me de joelhos em cima do sofá vermelho de napa rasgada. Para mim sempre foi de napa rasgada. A minha mãe dizia que aqueles rasgos os tinha feito ela, de tanto apoiar a mão no assento para se levantar com os filhos ao colo. A minha mãe teve três filhos. Eu sou a terceira.

Numa véspera de natal o meu pai desfez-me a primeira ilusão da vida. Estávamos sentados no sofá vermelho de napa rasgada e o pai natal não vinha. Eu perguntava por ele com a mesma persistência com que uma criança pergunta quando lhe dão o brinquedo que lhe prometeram. Cala-te que o pai natal não existe. Não acrescentou e deixa-me ver a televisão em paz, mas a intenção estava em todas as sílabas que saíram da sua boca. Tinha seis anos.

A severidade e a segurança da sentença foi tal, que não fiz mais perguntas. Até hoje nunca mais voltei a acreditar no pai natal e gostava que em muitas situações da minha vida, houvesse um pai que me desiludisse de todas as ilusões que vou criando com a mesma eficácia: pela raiz.

Quando nos mudámos para a casa nova, a nossa cozinha deixou de ter vista para o outeiro e para os ciprestes. Deixámos de ter a rua e a amoreira que nos alimentava a nós e aos bichos da seda, e passámos a desejar que não houvesse roupa estendida no quintal que pudesse comprometer os pontapés que dávamos numa bola a imitar o couro barato.

Eu nunca tinha tido uma escrivaninha. Marcava horas para me sentar nela como se ocupasse um qualquer cargo importante. Acho que era secretária. E pintava. E tentava traduzir para inglês um livro que trouxe da carrinha que tinha a mesma cor do sofá de napa rasgada, e que dizia Fundação Calouste Gulbenkian. Ia para o ciclo, tinha escolhido inglês, e na minha cabeça acreditava que nunca o conseguiria aprender.

Numa tarde abrasadora, enquanto todos dormiam a sesta, abri o livro e uma das primeiras palavras a traduzir era começou. Descobri no dicionário a sua equivalente, mas não estando completamente segura decidi confirmar com a minha irmã. O que quer dizer "begin"? A minha irmã dormia a sesta e não estava interessada em nada mais que uma boa sesta. E eu insisti. Repeti tantas vezes que a interrrogação pôs toda a casa em alvoroço. O meu pai, com os mesmos calções que ainda hoje usa nas suas sestas de Verão, pegou no chinelo e resolveu a questão. Não que me tivesse respondido. Aquela chinelada no rabo mesmo que indolor, mostrou-me que uma boa sesta tem sempre prioridade relativamente ao conhecimento, por mais urgente que ele seja.

Como um cão que salta à espera de uma festa, hoje tenho à frente um cursor que pisca diante dos meus olhos ansioso por deixar um rasto de palavras. Às vezes as palavras que saem de mim não têm nada para dizer ou não conseguem dizer nada. A palavra não é o meio mais eficaz de dizer.

Já não temos o sofá vermelho de napa rasgada e da minha janela da cozinha vejo a cidade. Não foi a minha vila que cresceu. Fui eu.