A mulher sabia. Todos os dias, quando o sol tocava a planície em frente ao monte, ela sentava-se na cadeira baixa ao lado do lume de chão. E todos os dias, a sala escurecia à medida que o homem se aproximava. Primeiro eram os seus passos na terra seca, depois, a sombra no chão crescendo lentamente até tapar a última luz do dia. Subia o poial e ali ficava, imóvel. Na penumbra da divisão, as ombreiras da porta enquadravam o céu numa explosão de cores de fim de tarde que contrastava com a silhueta negra do homem: a boina desmazelada na cabeça, a mão calejada a afastar as fitas da entrada. Então a mulher interrompia a renda que adiantava e olhava-o. Nunca pôde ver a expressão do marido, mas adivinhava-a. Baixava a cabeça e levantava-se sem uma palavra, e sem uma palavra ele sentava-se à mesa posta. A boina desmazelada, a mão na colher e os olhos no movimento do caço com que a mulher vertia o caldo sobre as sopas de pão.
Deitaram-se. Nessa noite, igual a tantas outras noites em que o céu é o silêncio abaulado sobre a cama de casal, a vida fez justiça pelas suas próprias mãos e parou-lhe finalmente o coração. A cama a ranger, o corpo do homem a contorcer-se, as rugas da face vincadas num gesto imenso de dor, os olhos vermelhos de sangue. E ao lado, a mulher a fingir que dorme. Fingindo, espera a absolvição de Deus, pois a vontade é pôr-se ela a olhar nos olhos do moribundo com o ódio de uma vida. Responder ao desespero do marido com a mesma impassibilidade com que ele aumentou o seu desespero. A mulher sabia que este dia acabaria por chegar. Sente a irreversibilidade dos anos gastos a baterem-lhe no peito. A mulher sabia mas nunca acreditou, e agora, de olhos fixos à escuta do último movimento agonizante, espera viver os poucos anos de vida que lhe restam.