A velha vestida de preto está parada, imóvel entre as árvores carbonizadas do cemitério. As chamas devoraram as cruzes e as fotografias que jaziam nas campas, e não podendo trespassar a frieza da pedra, uniram-se num calor imenso que matou os mortos pela segunda vez. A alvura sepulcral do mármore é agora negra.
Os olhos da velha olham de frente os seus pensamentos, indiferentes. De perfil vê-se a transparência do seu olho, o espaço vítreo logo a seguir à íris: a tristeza concentra-se aí, no sítio onde os pensamentos e os desejos que emanam da sua cabeça chocam com a realidade que os seus olhos vêem. A velha sabe que a negritude da cena é apenas a expansão do sentimento que habita dentro de si. Também a ela já lhe apeteceu por várias vezes fazer do corpo uma tocha e incendiar o mundo. Tenho o dever de viver. Não posso impedir a morte, não posso obrigar o amor… Subjugar-me a toda estas leis mundanas, perceber no fim de que não passo de um acto de presunção que Deus executou ao sexto dia. A grandiosidade da criação levada aos ombros pela tacanhez humana. Sim. Dever. A nossa impotência é o resultado da omnipotência de Deus.
Pisa a camada fofa de cinza e atravessa a ponte. Observa as suas pegadas solitárias. A cidade ao longe parece-lhe absurda, a sucessão de dias, a repetição nascer do sol pôr do sol, os subterfúgios que a humanidade inventou para se demarcar como animal civilizado, parecem-lhes absurdos. Tudo lhe parece tão despropositado, tão vazio, que a melhor resposta ao sol quando nasce é deitar-se a velha a desejar que a morte lhe chegue. Provavelmente não aguentarei até ao fim, pensa. Talvez um dia crave, com toda a sua resignação fingida, a navalha no pescoço. O sangue a espirrar ao ritmo dos últimos batimentos do seu coração e no final uma mancha vermelha contrastando com as cinzas da cidade.
A velha poderia rezar, mas ao oitavo dia Deus todo poderoso fugiu desta terra com a roupa que trazia no corpo.