Voltou a chover. A água estala contra a vidraça e quebra o meu silêncio.
Não durmo há várias noites e tenho saudades. O melhor do sono é acordar. Aqueles breves segundos em que abro os olhos e mexo os pés mas não tenho consciência da vida. Uma espécie de loucura fugaz, talvez. Por isso julgo os loucos donos de uma felicidade infinita, um corpo que vive inconsciente. A vida como um grande parque infantil. E eu sinto-me enlouquecer. A afastar-me cada vez mais do mundo, com uma serenidade que só a inconsequência permite.
A empregada da limpeza vem às sextas feiras. Apercebo-me do tempo quando ouço a chave dela na fechadura. Não sei que dia é hoje. No cinzeiro jazem os 8 maços de tabaco que lhe pedi que me comprasse antes que partisse para férias. Cigarros fumados e apagados e voltados a fumar até à beata. Ontem fumei a última e desde então desejo que a próxima hora seja sexta feira. A tampa do gira-discos está aberta e sob uma fina película de pó que cobre o disco, a agulha permanece imóvel no fim da última música. O lixo e os pratos por lavar vão-se acumulando e a minha última refeição rápida terminou muito antes dos cigarros.
Desisti de sair. Tenho tudo aqui. As tuas fotos e o teu nome que já não pisca no ecrã do meu computador. Aproximo-me da janela e através da roupa estendida desde sexta feira vejo o tapete de musgo que cresceu debaixo do meu carro. Hoje o rio está tão cinzento quanto a cidade da outra margem. As pingas caem grossas e ensopam a roupa de um homem de preto parado no pontão. Vejo as suas costas soluçar e adivinho que chora. Tem os braços caídos ao lado do corpo. Já não limpa as lágrimas que se misturam com a chuva e lhe escorrem pela cara abaixo. Aceitou a sua fragilidade e desistiu.
Aquele homem vai atirar-se ao rio. Já não é ninguém.