Corro sob um céu de nuvens mais escuras que a própria noite. O ar arranha-me quando se afasta à minha passagem. Sinto a fúria a crescer dentro de mim. Aumento a velocidade e o impacto dos meus pés no chão. Sinto as vértebras que se chocam e que se começam a desfazer, como eu quero que se desfaçam também todas as ilusões. A chuva miudinha corrói-me a pele e os meus músculos quentes rasgam-se. Corro ainda mais rápido. A decepção é o meu alimento. Ouço o som dos meus ossos a partirem-se e a pancada seca do meu tronco que cai desamparado no chão. Fecho os olhos com força: não quero acreditar nas mentiras que a cabeça inventa para que o corpo se mantenha vivo. A chuva torna-se forte e transforma a amálgama de carne e ossos partidos em que me tornei, numa poça que se escoa lentamente para a sarjeta. A noite passa e a luz do sol que cai entre os buracos das nuvens absorve a humidade. Sopra uma brisa leve nos passeios. De mim, ficou o sítio. Não acreditarei mais em veleidades.Venci todas as esperanças estéreis com que a natureza nos dotou numa tentativa de prolongar a espécie. Matei o corpo antes que a cabeça me corroesse a alma. E agora sim, do sítio onde deixei de existir, estou a salvo.