Friday, February 15, 2013


É noite de ano novo. Ouço os passos e as vozes alegres dos rapazes e das raparigas a caminho da praça. O vazio deste quarto é agora impossível de preencher pela vida que vai lá fora, parece que as paredes desta casa se tornaram impermeáveis a toda e qualquer esperança. Talvez seja melhor assim.
Os meus filhos telefonaram agora e desejaram-me feliz ano novo. Foi com muito custo que consegui atender o telefone, as dores atravessam-me o corpo em cada vez mais sítios. Quando era nova pensava em que pensaria um velho quando sabe que vai morrer. E lembro-me de quando tomei consciência de que a morte é um acontecimento certo, a que não se pode escapar como se escapa, com um pouco de sorte à doença ou à felicidade. Sou agora velha, e sei que um velho pensa sempre que vê a luz do sol a extinguir-se, que quer viver mais um dia.

Preparei o café instantâneo enquanto ouvia o zumbido da chaleira e fui-me encostar à janela com o silêncio dos barcos que fazem a travessia do rio nas minhas costas. Suportei a minha vida o tempo suficiente para que ninguém se lembrasse já de mim, mas agora que acabei de deixar a minha mãe morta no cemitério, já não existe nada neste mundo que não possa suportar a minha perda.

O meu filhos telefonaram e mesmo sabendo que não viverei muito mais tempo desejaram-me feliz ano novo. Não esperam que eu morra, fazem contas a quantos anos eu ainda durarei para saberem que idade terão eles nessa altura. Mesmo que não venham aqui muito, trata-se de uma perda, e as perdas põem-se sempre no final da mais longa fila. Embora já não consiga calar este cansaço que trago sempre no peito, disfarcei a voz de uma leveza que não trago, para lhes mentir. Disse-lhes que também eu iria à praça. De lá chega-me agora à cama o cheiro do porco a assar no espeto, e as vozes das pessoas que festejam.

Havia gente a correr pelos passeios dando gritos de entusiasmo. Festejavam num planeta cuja viabilidade dependia da extinção do Homem. No que me cabia, fiz a minha parte. Quando os primeiros foguetes formaram nas minhas costas uma tentativa estética, agarrei na faca de cozinha e num movimento seco, espetei-a no sítio exacto onde tantas vezes senti mais tristeza que amor. Lembro-me do som da lâmina a bater no osso e a deslizar, à procura de carne onde pudesse chegar mais fundo. O sangue e uma súbita falta de ar. O meu corpo arqueado e o cabo da navalha espetado entre as costelas. Não encontrei razão alguma que me fizesse arrepender, fechei os olhos e tranquei a respiração: não podia ser tão idiota que quisesse sobreviver.

É quase meia-noite. Levanto-me e sinto o frio do chão nos meus pés descalços. As casas brancas que sempre estiveram alinhadas em frente à minha janela parecem agora querer dispersar. Apoio a minha velha mão sobre a cal rugosa da parede. É ano novo, os foguetes estalam no ar e fazem mudar várias vezes de cor a minha camisa de dormir branca. Curvo-me sobre mim própria, como me curvei um dia sobre o corpo do meu marido, numa última tentativa de vivermos. Caio, e de repente falta-me o ar. Ouço ao longe o telefone. Serão certamente os meus filhos e os seus desejos utópicos de quem tem muitos fins de tarde pela frente. Fecho os olhos e em vão, agarro-me à última réstia de ar. O telefone parou de tocar.