É
noite de ano novo. Ouço os passos e as vozes alegres dos rapazes e
das raparigas a caminho da praça. O vazio deste quarto é agora
impossível de preencher pela vida que vai lá fora, parece que as
paredes desta casa se tornaram impermeáveis a toda e qualquer
esperança. Talvez seja melhor assim.
Os
meus filhos telefonaram agora e desejaram-me feliz ano novo. Foi com
muito custo que consegui atender o telefone, as dores atravessam-me o
corpo em cada vez mais sítios. Quando era nova pensava em que
pensaria um velho quando sabe que vai morrer. E lembro-me de quando
tomei consciência de que a morte é um acontecimento certo, a que
não se pode escapar como se escapa, com um pouco de sorte à doença
ou à felicidade. Sou agora velha, e sei que um velho pensa sempre
que vê a luz do sol a extinguir-se, que quer viver mais um dia.
Preparei
o café instantâneo enquanto ouvia o zumbido da chaleira e fui-me
encostar à janela com o silêncio dos barcos que fazem a travessia
do rio nas minhas costas. Suportei a minha vida o tempo suficiente
para que ninguém se lembrasse já de mim, mas agora que acabei de
deixar a minha mãe morta no cemitério, já não existe nada neste
mundo que não possa suportar a minha perda.
O meu
filhos telefonaram e mesmo sabendo que não viverei muito mais tempo
desejaram-me feliz ano novo. Não esperam que eu morra, fazem contas
a quantos anos eu ainda durarei para saberem que idade terão eles
nessa altura. Mesmo que não venham aqui muito, trata-se de uma
perda, e as perdas põem-se sempre no final da mais longa fila.
Embora já não consiga calar este cansaço que trago sempre no
peito, disfarcei a voz de uma leveza que não trago, para lhes
mentir. Disse-lhes que também eu iria à praça. De lá chega-me
agora à cama o cheiro do porco a assar no espeto, e as vozes das
pessoas que festejam.
Havia
gente a correr pelos passeios dando gritos de entusiasmo. Festejavam
num planeta cuja viabilidade dependia da extinção do Homem. No que
me cabia, fiz a minha parte. Quando os primeiros foguetes formaram
nas minhas costas uma tentativa estética, agarrei na faca de cozinha
e num movimento seco, espetei-a no sítio exacto onde tantas vezes
senti mais tristeza que amor. Lembro-me do som da lâmina a bater no
osso e a deslizar, à procura de carne onde pudesse chegar mais
fundo. O sangue e uma súbita falta de ar. O meu corpo arqueado e o
cabo da navalha espetado entre as costelas. Não encontrei razão
alguma que me fizesse arrepender, fechei os olhos e tranquei a
respiração: não podia ser tão idiota que quisesse sobreviver.
É
quase meia-noite. Levanto-me e sinto o frio do chão nos meus pés
descalços. As casas brancas que sempre estiveram alinhadas em frente
à minha janela parecem agora querer dispersar. Apoio a minha velha
mão sobre a cal rugosa da parede. É ano novo, os foguetes estalam
no ar e fazem mudar várias vezes de cor a minha camisa de dormir
branca. Curvo-me sobre mim própria, como me curvei um dia sobre o
corpo do meu marido, numa última tentativa de vivermos. Caio, e de
repente falta-me o ar. Ouço ao longe o telefone. Serão certamente
os meus filhos e os seus desejos utópicos de quem tem muitos fins de
tarde pela frente. Fecho os olhos e em vão, agarro-me à última
réstia de ar. O telefone parou de tocar.